quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Fernando Pessoa, entre livros e leitores *

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Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
nem consta que tivesse biblioteca...
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(Alberto Caeiro - heterônimo de Fernando Pessoa)
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O texto pega: onde já se viu um poema que diz que é bom não cumprir os deveres, que pode não ler o livro que a escola mandou e que ler é mesmo muito chato?

Por se tratar de um poema tão surpreendente, talvez seja interessante pôr em prática, a propósito dele, nossa liberdade máxima de leitores.
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Nossa liberdade de leitores nos permite entender literalmente o poema Liberdade, isto é, tomá-lo ao pé da letra, acreditando que ele diz exatamente o que está escrito.
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Mas nossa liberdade de leitores também nos permite entender o texto de outra forma, supondo que o poema pode ter um segundo sentido, que, nas suas entrelinhas, desmancha seu sentido literal. Podemos imaginar um poeta malicioso, que critica livros, escola e estudo como simples estratégia. E o resultado dessa estratégia pode ser levar seus leitores — talvez estranhando o que o poeta diz — a pensarem melhor no assunto.

O que é que você pensa sobre o assunto? Eu, por mim, fico com os dois sentidos.

Gosto de pensar que quem não gosta de ler, quem acha que ler é das coisas mais chatas do mundo, tem direito a essa sua opinião, tem direito de fechar os livros — este, por exemplo — e ir ao mundo, cuidar da vida. Mas, outras vezes, também gosto de pensar que a ironia é uma faculdade humana muito fina, e que, muitas vezes, os poemas, dizendo talvez o contrário do que parecem dizer, deixam aos leitores a gratificante sensação de serem autores do texto que lêem, na medida em que constroem significados para eles.

Você, por exemplo. Que significado você constrói para este texto?
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* Este texto de Marisa Lajolo (aqui reduzido) intregra o livro A vida que a gente quer depende do que a gente faz, do Instituto Ecofuturo. A Versão impressa está esgotada, mas você pode baixá-lo gratuitamente AQUI.

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