sexta-feira, 12 de março de 2010

O papel da leitura em regiões de conflito e pobreza

Guilherme Freitas - Prosa Online - 20/02/2010

A antropóloga francesa Michèle Petit fala de experiências desenvolvidas por mediadores de leitura em "espaços em crise" - locais afetados por confrontos armados, catástrofes naturais, pobreza - sobretudo na América Latina. Nestas situações, sugere: "Mais importante que a interpretação do texto é o encontro ao redor do livro: a leitura funciona como um catalisador para discussões em grupo sobre questões (pessoais ou coletivas) despertadas pelas obras".

O papel da leitura em regiões de conflito e pobreza
Guilherme Freitas - Prosa Online - 20/02/2010

Numa das muitas histórias sobre grupos de leitura em regiões em conflito reunidas em "A arte de ler" (editora 34, tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini, R$ 42), a antropóloga francesa Michèle Petit conta o caso dos bibliotecários da Comuna 13, um conjunto de bairros pobres na periferia de Medellín. No fogo cruzado entre guerrilheiros das FARC e paramilitares colombianos, a biblioteca se transformou em ponto de encontro (e, muitas vezes, em abrigo) para jovens da vizinhança, que encontravam nas atividades promovidas pelos funcionários e nos livros disponíveis nas estantes um refúgio momentâneo para a brutalidade da rotina.

A história pode sugerir uma visão um tanto romântica da cultura como antídoto para a barbárie (impressão reforçada pelo subtítulo do livro, "Como resistir à adversidade"), mas Michèle Petit argumenta, em entrevista ao GLOBO, que o trabalho de pessoas como os bibliotecários de Medellín nada tem de ingênuo: "eles sabem que a literatura não vai reparar as violências ou as desigualdades do mundo, mas observam que ela oferece um apoio notável para colocar o pensamento em ação, para provocar o autoquestionamento, suscitar um desejo, uma busca por outra coisa", diz.

"A arte de ler" relata experiências desenvolvidas por mediadores de leitura em "espaços em crise" — locais afetados por confrontos armados, catástrofes naturais, pobreza e migrações forçadas — em diversas regiões, mas sobretudo na América Latina (inclusive no Brasil). Nestas situações, sugere a autora, mais importante que a interpretação do texto é o encontro ao redor do livro: a leitura funciona como um catalisador para discussões em grupo sobre questões (pessoais ou coletivas) despertadas pelas obras.

Autora de "Os jovens e a leitura" (publicado também pela editora 34), no qual reflete sobre os desafios da tão debatida "formação de leitores", Michèle critica nesta entrevista a forma como o tema costuma ser abordado ("Certos discursos de glorificação da leitura dão vontade de jogar videogame!", brinca) e defende que as situações extremas relatadas em "A arte de ler" podem inspirar novas abordagens para a difusão da leitura.

"A arte de ler" fala de experiências de leitura em locais que a senhora chama de “espaços em crise”, sobretudo na América Latina. Por que escolheu esses lugares e que tipo de atividade encontrou neles?

MICHÈLE PETIT: Há muito tempo observa-se que a leitura ajuda a resistir às adversidades, mesmo nos contextos mais terríveis. Mas a maior parte daqueles que deram testemunho disso estavam imersos desde a infância na cultura escrita. As experiências que me interessaram na América Latina reúnem crianças, adolescentes ou adultos com pouca escolaridade, vindos de famílias pobres, que cresceram longe dos livros. Por exemplo: na Colômbia, jovens saídos da guerrilha ou de grupos paramilitares, toxicômanos, soldados feridos, populações desalojadas; na Argentina, mães de crianças pequenas em situação de extrema pobreza, jovens que sofreram abusos ou vítimas de catástrofes naturais. Essas experiências literárias compartilhadas se desenrolam em espaços de liberdade, sem registros escritos nem controle de presença, sem preocupação com rendimento escolar imediato nem resultados em termos quantitativos. O dispositivo é aparentemente muito simples: um mediador propõe suportes escritos a pessoas que não estão acostumadas a eles, lê alguns em voz alta, e então um relato ou um debate surgem entre os participantes. Os textos lidos despertam seus pensamentos e palavras. Não porque esses textos evoquem situações próximas das que eles viveram. Aqueles que têm um efeito "reparador" são em geral até muito surpreendentes. Através de um conto ou poema qualquer escrito do outro lado do mundo, eles leem páginas dolorosas de sua vida de forma indireta, falam de sua própria história de outra maneira, e conseguem compartilhá-la.

Quais são as principais diferenças entre a leitura individual e a experiência coletiva que é a leitura mediada?

MICHÈLE: Há séculos a leitura é associada à imagem de um leitor — e mais ainda, talvez, de uma leitora — solitário e silencioso, numa intimidade autossuficiente. Isso pode contribuir para afastar da leitura pessoas que vivem em meios onde se dá preferência a atividades coletivas e onde o ato de se colocar à parte do grupo é visto como rude. As experiências de leitura compartilhada, ao contrário, podem facilitar a apropriação dos textos, desde que eles não sejam percebidos como algo imposto. O interessante nos casos que estudei é que eles se desenrolam num quadro coletivo, mas onde cada pessoa é objeto de atenção singular. Cada um é ouvido com atenção, disponibilidade e confiança em sua capacidade e criatividade. Os ritmos ou as culturas próprias a uns e a outros são respeitados, suas palavras recebidas e valorizadas. Esses jovens são frequentemente solicitados, e formados, para tornarem-se também mediadores de leitura para outros, como faz, por exemplo, o grupo A Cor da Letra, no Brasil. É uma forma coletiva, mas que dá lugar a vozes plurais, a uma escuta mútua, a singularidades. A leitura solitária não se opõe a esses pequenos grupos livremente constituídos onde o tempo de leitura e discussão é repartido e onde cada um se retira em seguida para sua casa, levando consigo fragmentos de páginas lidas e palavras compartilhadas. Tanto uma quanto a outra desenham espaços de liberdade e, às vezes, de resistência.

Segundo o livro, os mediadores veem seu trabalho como uma atividade "cultural, educativa e, em certos casos, política". Qual seria a dimensão política da difusão da leitura?

MICHÈLE
: Aqueles cujo trabalho acompanhei acreditam trabalhar por algo muito maior, que é de ordem cultural, poética, educativa e, em alguns aspectos, política. Eles não são ingênuos, sabem que a literatura não vai reparar as violências ou as desigualdades do $, mas observam que ela oferece um apoio notável para colocar o pensamento em ação, para provocar o autoquestionamento, suscitar um desejo, uma busca por outra coisa. E numa época em que os partidos políticos não conseguem fazer isso, a leitura compartilhada aparece como um meio de mobilizar as pessoas, de driblar a repressão à palavra e produzir experiências estéticas transformadoras (além de favorecer a aproximação da cultura escrita). Estes professores, bibliotecários, escritores, psicólogos, ou simples cidadãos, se engajam numa ampla partilha do texto, mas também na construção de uma sociedade mais democrática e solidária.

Alguns argumentos a favor da leitura de obras literárias fazem com que ela pareça mais uma obrigação ou uma necessidade do que um prazer. Como fazer esse trabalho de difusão e, ao mesmo tempo, preservar a dimensão lúdica da leitura?

MICHÈLE: Certos discursos de glorificação da leitura dão vontade de jogar videogame! E os discursos jamais fizeram alguém ler, tampouco as campanhas de massificação para "criar" ou "formar" leitores. Seja pai ou professor, quem diz que uma criança tem que ler (ou pior: que tem que gostar de ler!) faz da leitura um fardo ao qual ela precisa se submeter para satisfazer os adultos. O impasse está garantido se quem diz que "ler é um prazer" não tem nenhum gosto pela leitura: a criança vai sentir que a pessoa não está sendo sincera. O belo discurso transmite o contrário do que pretendia. Afinal, no fim das contas, por que alguém se torna leitor? Na maior parte do tempo, porque viu a mãe ou o pai mergulhado nos livros quando era pequeno e se perguntou que segredos eles podiam desvendar ali. Ou porque eles leram histórias em voz alta, dando à criança liberdade de ir e vir, sem conferir constantemente se ela tinha entendido bem. Ou ainda porque as obras que havia em casa eram assunto de conversas intrigantes ou divertidas. Em certas famílias, as chances de ter essas experiências vêm de nascença ou quase. Em outras, os livros evocam para os pais nada além de lembranças de humilhação e tédio. Junte-se a isso as dificuldades econômicas e a distância dos locais onde se pode encontrar suportes escritos. Nessas famílias, se as crianças ou adultos acabam lendo, e até vivendo a leitura com alegria, é graças a um encontro, ao acompanhamento caloroso de um mediador (professor, bibliotecário, amigo, assistente social...) que tem gosto por livros e sabe tornar esses objetos desejáveis, o que é uma arte. Essa arte passa por um trabalho sobre si mesmo, sobre sua própria relação com os livros, para que a criança e o adolescente não digam: "Mas o que ele quer, esse aí, por que ele quer me fazer ler?" É esta arte que está no coração das experiências que estudei e no coração do meu livro. Ela tem que ser apoiada, encorajada, e as iniciativas desses mediadores devem ser difundidas e multiplicadas, por uma vontade política, para que seja dada a todos, onde quer que vivam, uma chance de encontrar ecos de sua experiência humana, de descobrir outros mundos e de se apropriar realmente dos textos — o que é completamente diferente de aprender a ler.

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